quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Moda: a divindade moderna

"Andem na moda, claro!

Adotem penteados, pinturas, adereços modernos!

Mas modernizem, antes de qualquer coisa, a sua mentalidade!"

Clarice Lispector


O Oroborus é uma serpente engolindo a própria cauda. A imagem é uma das mais antigas e universais sendo possível encontrá-la desde os tempos mais remotos, em culturas tão diversas quanto distantes. Há representações de Oroborus em figuras persas, maias, egípcias, celtas, chinesas, nórdicas, gregas, medievais e hindus. Mesmo apresentando muitas variações de formato, ou ainda sendo usado em conjunto com outros símbolos místicos, o Oroborus sempre manteve um significado singular em todas as culturas em que esteve presente: o infinito, a imortalidade, a eternidade, o renascimento. Por conseguinte, era também associado à regeneração, às fases lunares, à vida após a morte e também à totalidade universal, com seus ciclos transformadores de destruição e reconstrução.

A moda é o Oroborus da sociedade atual. Diferente dos clássicos greco - romanos que cultuavam deuses do Olimpo, o homem moderno cultua a moda como se ela representasse uma força mais onipotente, onisciente e onipresente do que os próprios deuses. E a representação física deste novo deus moderno só poderia se fazer através da imagem de Oroborus. Destruindo-se e renovando-se, ela representa o infinito ciclo de superação e criação com que o homem lida com o que há de mais natural é essencial: cobrir o corpo.

De acordo com o dicionário moda é uma forma passageira e facilmente mutável de se comportar e, sobretudo, de se vestir e pentear. Sendo assim, seria moda tudo aquilo que é usado durante um tempo descartável e que, consequentemente, é abandonado e substituído por algo que – para muitos – torna-se evidentemente melhor.
Jaqueta com ombreiras gigantescas; calça boca de sino; calça jeans com nesga; sapato cavalo de aço; franja Chitãozinho e Xororó; fita com laços enormes para usar no cabelo; brincos de bola coloridíssimos de pressão; esmalte rosa opaco... Uma foto antiga pode revelar com clareza o que é a moda de um tempo e o que é o tempo para a moda. E a moda de um tempo também pode ser definida como os valores, as crenças, os medos e os sonhos de uma época.

Ainda que um brechó pretenda reviver e renovar peças antigas, os valores representados por elas acabam por se perder com o tempo. Assim, ontem, um perfume Channel nº 5, por exemplo, que era referencial de uma minoria privilegiada, hoje pode ser adquirido por mais pessoas, por preço mais acessível e já sem a sofisticação e o fetichismo com que era consumido.

É o Oroborus com seus ciclos transformadores de destruição e reconstrução, num constante movimento de superação das próprias regras e expectativas. A moda vai criando normas e destruindo-as, impondo costumes e renovando-os. As ombreiras gigantes retornam com traços futuristas; a calça boca de sino reaparece como ícone fashion do passado nas passarelas do presente; a nesga invade as calças, blusa e saias; o cavalo de aço é batizado com outro nome e ganha novas cores; a franja surge repaginada e tornando as mulheres todas iguais (novamente); os laços enormes espalham-se por todo o vestuário; os brincos de bola descolorem e proliferam nas vitrines e o esmalte rosa opaco ganha embalagens mais bonitas. E as pessoas que pensam estar usando novas roupas se vestem de roupas novas sem perder o vínculo com o passado. Os valores, as crenças, os medos e os sonhos são outros, mas a moda que cobre os corpos é a mesma.

O Olimpo se expande e pode ser Paris, Milão ou New York, os altares de pedra são substituídos por vitrines de vidro e manequins de plástico, a adoração pode ser realizada nas platéias dos desfiles... A divindade moderna vai reabastecendo sua força a cada estação, à cata de superar-se e surpreender-nos, a custa de uma constante magia que se torna ultrapassada e descartável. Tal como Oroborus a moda realizada seu infinito ciclo e o homem, sedento e dependente, consome-se.

Juliana Gervason,
Professora de Literatura. Trabalha nos Colégios Granbery e Apogeu. Formada em Letras - UFJF. Especialista em Estudos Literários - UFJF. Mestre em Literatura Brasileira - CESJF. E, atualmente, cursa Doutorado em Estudos Literários, também pela UFJF, atuando na área de Teopoética e pesquisando a obra de Clarice Lispector. Além disso, está cursando Design de Moda na Estácio de Sá. Literatura é seu objeto de estudo, de trabalho e de lazer! www.fiztrinta.blogspot.com


Extraido de http://www.ecaderno.com/Colunas/1036/Juliana%20Gervason/Moda:-a-divindade-moderna

Um comentário:

Alexandre B. Pinheiro disse...

Fantástico este artigo! Em que mais será que estamos nos cosumindo? Em ódio, em medo ou até mesmo em amor?